quarta-feira, 16 de julho de 2008

o ESQUECIDO

o ESQUECIDO
O ponto de ônibus

Chego ao meu destino, o ponto de ônibus, não estou sozinho. Há uma linda guria no local, mas não terei que me dar ao trabalho de conhecê-la.
- Oi Mateus, tudo bom com você?
Ela me reconhece. Não é a primeira vez que isso me acontece, um estranho vem conversar comigo como se fossemos velhos amigos. A verdade é que eu sou um cara esquecido, não do ponto de vista alheio, não que as pessoas não se lembrem de mim, mas mesmo que fosse, tal informação eu não poderia lhes dar.
- Olá, tudo ótimo! E com você? – Retribuo na melhor performance teatral, resultado de anos de prática, quase não há hesitação, ela provavelmente me conhecia, e o seu cheiro me era familiar.
- Tudo bem. Nossa, você está usando aquele mesmo perfume e ainda não consigo me lembrar o nome, está na ponta da língua você vai ver, logo eu me lembro.
É isso, agora me lembro, ela começara a pegar ônibus comigo um dia antes, era tanto amante de perfumes quanto eu e a havia conhecido um dia antes, neste mesmo ponto, fiz um elogio ao seu perfume e ela desde então tentava descobrir o nome do meu. Mas qual era o seu nome? Por que eu não me lembrava?
- Confesso que curiosidade é algo perturbador, mas não é magnífica a forma como um perfume ganha significado ante o mistério de seu nome, ele passa a ter a identidade de que o usa.
- Só você mesmo Mateus, brinca com as palavras a ponto de fazer um insulto parecer bonito!
A conversa estava fluindo, mas um ônibus estava se aproximando, seria o dela?
- Nossa achei você muito simpática, além de estar sempre perfeitamente perfumada, será que você tem MSN?
- A sim, me de sua mão, deixa eu escrever aqui bem rápido que meu ônibus está chegando.
Uma jogada de sorte, seu MSN era seu primeiro nome, seguido por alguns números, por algum motivo o nome parecera inteiramente novo e familiar. Seu ônibus chega.
- Tchau Mateus!
- Tchau Cinira, até amanhã!
O meu ônibus vem logo em seguida, lá vou eu para a escola, local onde eu descobriria horas mais tarde que havia tirado um 5 em matemática graças as famosas ‘colas’ cedidas pelos amigos. Não gosto de matemática.
No mesmo dia também, ouvi um professor dizendo algo que me abalou um pouco:
- Não devemos nos acostumar com nossas falhas, devemos superá-las, pois todo ser humano tem a capacidade de evoluir e se aperfeiçoar.
Foi inspirador, será que eu poderia ir melhor na escola se fizesse algo para mudar isso? Será que eu poderia me lembrar de detalhes que por algum motivo fugiam de minha memória? Conversei com o professor no fim da aula, mais tarde com a minha mãe, eu não queria mais ser um garoto esquecido.

Os testes

Ao final de um mês, foram levadas várias teorias e consultas médicas, dentre elas, destaco algumas que me despertaram uma certa curiosidade.
A primeira, um oculista, pois segundo o professor, não enxergar direito poderia gerar um não entendimento global do conteúdo e por isso eu não estava absorvendo o conteúdo. Eu, entretanto, sabia que minha vista era boa, uma vez que colava com precisão a prova de alguém a duas carteiras de mim, mas não queria descartar as hipóteses. Resposta foi a que o médico me deu:
- Não se preocupe senhora, seu filho tem a visão tão boa quanto a do super homem!
A segunda, uma fonoaudióloga, pois como segunda teoria, uma não correta compreensão dos sons seria certamente, um ponto vital para guardar informações, como eu poderia me lembrar de algo que mal havia ouvido? Mas não levei a sério essa teoria também, apesar de mais convincente que a anterior, minha audição era suficientemente boa para escutar um aluno passando ‘cola’ duas carteiras a minha frente. A resposta, desta fonoaudióloga também me surgiu de maneira estranha:
- A senhora terá um possível afinador de pianos em casa. Não se preocupe, seu filho tem a audição melhor que a do Batman!
A terceira opção foi descartada, dentista. Não que meus dentes eram perfeitos, mas apesar de não fazer nenhum sentido (para mim pelo menos), dentista era algo que eu temia e por piedade ou descrença por parte dela, decidimos não ir ao dentista.
A quarta teoria, uma psiquiatra, essa era uma novidade para mim, não soubera eu que já tão cedo estava ficando louco, mas minha mãe contra argumentou que psiquiatras podem ser útil a todos, pois a nossa cabeça é ainda um mistério e poderia ser que algo estava acontecendo comigo. Eu disse que ia, mas que não era louco, verdade era que eu estava curioso para saber como era uma psiquiatra, será que desta vez eu seria comparado a um vilão como o Dick Vigarista? Por sorte ou revés, esta era diferente, não fui comparado com ninguém, para ser sincero, ela falava pouco, eu era o astro, gostei realmente dela, e a idéia foi que eu começasse a escrever tudo em uns caderninhos, onde ia, a que horas, o que comia, que eu havia conhecido, o que havia ocorrido, o que havia aprendido... E por ai vai, eu só precisava retornar daqui um mês, não seriam necessárias mais seções nesse meio tempo.

A descoberta

Acabei comprando dois cadernos, em um deles eu escrevia diariamente, tudo que acontecia, no outro, eu dividia por categorias como amizades que eu fazia, fatos que me ocorriam, coisas que eu aprendia.
Foi incrível, mamãe havia me dito que foi difícil me colocar em uma escola para crianças normais com a minha dificuldade em aprender e ela mal sabia que eu tinha um tal de bloqueio, pois segundo a psicóloga minha mente simplesmente não queria aprender tais coisas.
Passou-se algum tempo e eu nem precisava mais de copiar totalmente os cadernos dos amigos, eu já conseguia fazer parcialmente os exercícios, os professores elogiavam meu desempenho, principalmente o de matemática.
Do ponto de ônibus eu já sabia que o perfume da Cinira era o Jardim de Vênus, com notas de jasmim, sabia também que ela recebera este nome pois ela nascera no dia em que sua mãe morrera, no parto, por isso seu nome, que significa harpa de som triste, mas que seu pai costumava dizer que um dia daria uma bela canção
Das minha amizades eu já havia perdido três, pois eu, diziam eles, já não era mais aquela pessoa alegre de antes. E não era mesmo, apesar das aparências iniciais, a mudança foi pra pior.
O mundo parecia totalmente novo a mim, o noticiário agora ficava em minha cabeça, as brigas que aconteciam agora ficavam em minha cabeça, as inimizades ficavam em minha cabeça, a matemática e física que me tiraram um bom pedaço do mistério que é a vida agora ficava em minha cabeça, o nome ruim da garota dos perfumes, agora tudo ficava em minha cabeça e foi somente assim que eu percebi que tinha de fato um bloqueio, o bloqueio às coisas ruins.
Joguei fora os meus cadernos.
Joguei fora os livros de exercícios.
Não retornei à psiquiatra.
Aos poucos retornei a minha pura essência, puramente feliz.
Apenas uma única coisa deixei escrita, ao lado direito da cama, exatamente alinhado com o travesseiro, um quadro grande, envolto por uma bela moldura contendo uma única frase em letras belas e legíveis:
“Se o que for bom em ti ficar, não há mais nada pra se lembrar”, nem sempre entendia a frase do quarto, mas um algum motivo que não me lembro agora, a respeitava.

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Como bem nos lembra o ditado popular "Daria um boi para não entrar e uma manada para não sair". E tu, gostarias de ser uma pessoa esquecida?

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